Introdução
O devaneio é uma parte natural e muitas vezes agradável da experiência humana, permitindo-nos explorar cenários imaginários, planejar o futuro ou simplesmente divagar por alguns momentos. No entanto, para algumas pessoas, essa atividade mental inofensiva pode se transformar em um fenômeno intenso e compulsivo, conhecido como Devaneio Excessivo, ou Maladaptive Daydreaming (MD). Esta condição, identificada e estudada pelo professor Eliezer Somer da Universidade de Haifa, em Israel, descreve um estado em que o indivíduo se encontra profundamente imerso em fantasias vívidas e elaboradas, a ponto de interferir significativamente em sua vida diária, relacionamentos e responsabilidades [1, 2].
Ao contrário do devaneio comum, que é breve e controlável, o Devaneio Excessivo é caracterizado por fantasias prolongadas, complexas e muitas vezes com enredos contínuos, que podem consumir várias horas do dia. Pessoas que experimentam o MD frequentemente se sentem compelidas a retornar a esses mundos imaginários, buscando refúgio ou satisfação que não encontram na realidade. Embora não seja oficialmente reconhecido como um transtorno psiquiátrico nos manuais diagnósticos atuais, o impacto negativo na qualidade de vida dos indivíduos afetados tem gerado crescente interesse na comunidade científica e clínica [1, 3].
Este artigo visa explorar em profundidade o Devaneio Excessivo, abordando sua definição detalhada, as características que o distinguem do devaneio normal e de outros transtornos, e as principais formas de identificá-lo. Compreender o MD é o primeiro passo para buscar estratégias de manejo eficazes e melhorar o bem-estar daqueles que vivem com essa condição. Nosso objetivo é fornecer um recurso abrangente e baseado em evidências para ajudar leitores a entenderem melhor o Devaneio Excessivo e, se necessário, a procurar o apoio adequado.
O Que É Devaneio Excessivo (Maladaptive Daydreaming)?
O Devaneio Excessivo (MD) pode ser definido como uma atividade de fantasia extensa e imersiva que substitui a interação humana e/ou interfere com o funcionamento acadêmico, profissional ou social [4]. É um comportamento em que a pessoa se encontra excessivamente imersa nas fantasias geradas pela sua mente, causando sintomas como devaneios vívidos ou prolongados e desinteresse por atividades reais [1].
As fantasias no MD são tipicamente muito mais elaboradas e detalhadas do que os devaneios comuns. Elas podem envolver personagens complexos, enredos intrincados, cenários detalhados e até mesmo diálogos. Para o indivíduo, esses mundos imaginários podem parecer tão reais e envolventes que a fronteira entre a fantasia e a realidade se torna tênue, embora a pessoa geralmente mantenha a consciência de que está fantasiando [2].
Características Principais do Devaneio Excessivo:
•Vividade e Complexidade: As fantasias são extremamente vívidas, detalhadas e complexas, muitas vezes com narrativas contínuas que se assemelham a filmes ou séries internas [1, 2].
•Duração Prolongada: Os episódios de devaneio podem durar minutos ou até horas, consumindo uma parte significativa do tempo diário do indivíduo [1, 4].
•Compulsão e Dificuldade de Controle: Há um forte desejo ou compulsão de se engajar no devaneio, e a pessoa pode ter dificuldade em interrompê-lo, mesmo quando deseja [2].
•Gatilhos Específicos: O devaneio pode ser desencadeado por estímulos sensoriais (música, cheiros), experiências físicas (caminhada), ou eventos da vida real (conversas, estresse) [2].
•Movimentos Repetitivos e Expressões Faciais: Frequentemente, o devaneio é acompanhado por movimentos físicos repetitivos (como andar de um lado para o outro, balançar), expressões faciais e até sussurros ou conversas em voz alta, como se a pessoa estivesse atuando sua fantasia [1, 2].
•Impacto Negativo na Vida Diária: O MD interfere nas responsabilidades diárias, no desempenho acadêmico ou profissional, e nos relacionamentos sociais, levando a sentimentos de culpa, vergonha e isolamento [1, 2].
•Mecanismo de Fuga: Muitas vezes, o devaneio excessivo serve como um mecanismo de enfrentamento para lidar com tristeza, estresse, ansiedade, tédio ou solidão [1, 2].
Como Identificar o Devaneio Excessivo?
A identificação do Devaneio Excessivo pode ser desafiadora, pois muitas pessoas o mantêm em segredo devido à vergonha ou ao medo de serem incompreendidas. No entanto, existem sinais e características que podem ajudar a reconhecer essa condição. É importante ressaltar que a autoavaliação não substitui um diagnóstico profissional, mas pode ser um primeiro passo para buscar ajuda [3].
Sinais e Sintomas Comuns a Observar:
1.Imersão Profunda em Fantasias: Você se pega frequentemente perdido em mundos imaginários vívidos e detalhados, com personagens e enredos complexos?
2.Duração e Frequência: Seus devaneios duram por longos períodos (minutos a horas) e ocorrem várias vezes ao dia?
3.Dificuldade em Parar: Você tem dificuldade em interromper o devaneio, mesmo quando precisa se concentrar em tarefas ou interagir com outras pessoas?
4.Movimentos Físicos Associados: Você realiza movimentos repetitivos (andar, balançar), faz expressões faciais ou sussurra/fala durante seus devaneios?
5.Impacto Negativo: O devaneio interfere em sua capacidade de realizar tarefas diárias, trabalhar, estudar ou manter relacionamentos?
6.Sentimentos de Culpa ou Vergonha: Você sente culpa, vergonha ou angústia em relação ao tempo que passa devaneando?
7.Preferência pela Fantasia: Você prefere passar tempo em seu mundo imaginário do que interagir com pessoas ou se engajar em atividades do mundo real?
8.Gatilhos Conhecidos: Você percebe que certos estímulos (música, filmes, emoções) desencadeiam seus episódios de devaneio?
Questionários de Autoavaliação:
Embora não haja um teste diagnóstico oficial, a Maladaptive Daydreaming Scale (MDS-16), desenvolvida por Eli Somer, é uma ferramenta amplamente utilizada para avaliar a presença e a gravidade do Devaneio Excessivo [2, 5]. Esta escala de 16 itens ajuda a quantificar a frequência, a intensidade e o impacto do MD na vida do indivíduo. Versões adaptadas da MDS-16 estão disponíveis e podem ser usadas como ferramentas de autoavaliação para indicar a necessidade de uma avaliação mais aprofundada por um profissional de saúde mental [5].
Outros questionários e escalas, como a Daydream Frequency Scale (DFS), também podem ser utilizados para avaliar a frequência e as características dos devaneios, ajudando a diferenciar o devaneio normal do excessivo [6].
É fundamental lembrar que esses questionários são ferramentas de triagem e não fornecem um diagnóstico definitivo. Se você se identifica com muitos dos sintomas e o devaneio está causando sofrimento ou prejudicando sua vida, é altamente recomendável buscar a avaliação de um psiquiatra ou psicólogo.
Referências
[1] Tua Saúde. (2024, 19 de fevereiro). Devaneio excessivo: o que é, sintomas, causas e tratamento. Disponível em: https://www.tuasaude.com/devaneio-excessivo/
[2] Apollo Hospitals. (2025, 25 de abril). Devaneio Desadaptativo – Causas, Sintomas, Diagnóstico e Tratamento. Disponível em: https://www.apollohospitals.com/pt/diseases-and-conditions/maladaptive-daydreaming
[3] Psicólogo.com.br. (2020, 1 de maio). Devaneio Excessivo. Disponível em: https://www.psicologo.com.br/blog/devaneio-excessivo/
[4] Somer, E. (2002). Maladaptive Daydreaming: A Qualitative Inquiry. Journal of Contemporary Psychotherapy, 32(2-3), 197-212.
[5] Scribd. Escala de Devaneio Excessivo MDS 16 Versao Brasileira. Disponível em: https://www.scribd.com/document/786799681/Escala-de-Devaneio-Excessivo-MDS-16-versao-brasileira
[6] UFAM. Evidências iniciais de validade de conteúdo da adaptação transcultural da Daydream Frequency Scale (DFS). Disponível em: