Introdução
O Devaneio Excessivo (MD), ou Maladaptive Daydreaming, não surge no vácuo. Como muitos fenômenos psicológicos complexos, ele tem raízes profundas que se estendem através da história pessoal, experiências de vida e fatores psicológicos subjacentes do indivíduo [1]. Compreender essas origens é fundamental não apenas para aqueles que vivenciam o MD, mas também para familiares, amigos e profissionais de saúde mental que buscam oferecer apoio eficaz.
Este artigo explora as múltiplas camadas que contribuem para o desenvolvimento do Devaneio Excessivo, desde experiências traumáticas na infância até padrões de estresse crônico na vida adulta. Ao examinar essas raízes, podemos desenvolver uma compreensão mais compassiva e abrangente desta condição, bem como identificar pontos de intervenção que podem ser cruciais para o processo de recuperação.
É importante ressaltar que a presença de fatores de risco não determina inevitavelmente o desenvolvimento do MD. Cada pessoa é única, e a interação complexa entre predisposição, ambiente e experiências pessoais cria um padrão individual que requer compreensão e abordagem personalizadas.
O Papel do Trauma na Gênese do Devaneio Excessivo
Trauma na Infância e Adolescência
Pesquisas emergentes sugerem uma forte correlação entre experiências traumáticas na infância e o desenvolvimento posterior do Devaneio Excessivo [2]. O trauma infantil pode assumir muitas formas: abuso físico, emocional ou sexual, negligência, perda de entes queridos, divórcio dos pais, bullying escolar ou exposição à violência. Cada uma dessas experiências pode deixar marcas profundas na psique em desenvolvimento de uma criança.
Quando uma criança enfrenta situações que são emocionalmente avassaladoras ou fisicamente perigosas, seu sistema nervoso pode desenvolver mecanismos de enfrentamento adaptativos para a sobrevivência. O devaneio, neste contexto, serve como um refúgio psicológico onde a criança pode escapar de uma realidade dolorosa ou ameaçadora. Nos mundos imaginários, ela pode experimentar segurança, controle, amor e aceitação que podem estar ausentes em sua vida real.
O que torna esta adaptação particularmente problemática é que, embora seja funcional durante o período traumático, o padrão pode persistir muito além da situação original. A mente, tendo aprendido que a fantasia oferece alívio e proteção, continua a recorrer a este mecanismo mesmo quando as circunstâncias externas mudaram e não há mais perigo imediato.
Trauma Complexo e Desenvolvimento da Identidade
O trauma complexo, que resulta de exposição prolongada e repetida a situações traumáticas, especialmente durante períodos críticos de desenvolvimento, pode ter um impacto particularmente profundo no desenvolvimento do MD [3]. Crianças que crescem em ambientes cronicamente instáveis, negligentes ou abusivos podem desenvolver um senso fragmentado de identidade e dificuldades significativas na regulação emocional.
Nestes casos, o Devaneio Excessivo pode servir não apenas como escape, mas como um laboratório para o desenvolvimento da identidade. Nos mundos imaginários, o indivíduo pode experimentar diferentes versões de si mesmo, explorar relacionamentos idealizados e construir narrativas coerentes sobre quem é e quem poderia ser. Esta função pode ser particularmente atraente para aqueles que lutam com questões de autoestima, identidade ou senso de propósito na vida real.
Mecanismos Neurobiológicos do Trauma
Do ponto de vista neurobiológico, o trauma pode alterar o funcionamento de várias regiões cerebrais envolvidas na regulação emocional, memória e atenção [4]. O sistema límbico, responsável pelo processamento emocional, pode tornar-se hiperativo, enquanto o córtex pré-frontal, responsável pelo controle executivo e tomada de decisões, pode ter seu funcionamento comprometido.
Essas alterações neurobiológicas podem criar uma predisposição para buscar formas de regulação emocional que contornem os sistemas normais de processamento. O Devaneio Excessivo, com sua capacidade de gerar estados emocionais intensos e gratificantes, pode tornar-se uma forma de automedicação neurológica, oferecendo alívio temporário de estados emocionais difíceis.
Estresse Crônico e Suas Manifestações
Estresse na Vida Adulta
Embora o trauma na infância seja um fator significativo, o Devaneio Excessivo também pode se desenvolver ou intensificar em resposta ao estresse crônico na vida adulta [5]. Pressões acadêmicas ou profissionais intensas, problemas financeiros, dificuldades relacionais, problemas de saúde ou grandes transições de vida podem todos contribuir para o desenvolvimento ou exacerbação do MD.
O estresse crônico mantém o sistema nervoso em um estado de alerta constante, esgotando os recursos psicológicos e físicos do indivíduo. Neste estado de depleção, a mente pode buscar formas de restauração e alívio que sejam facilmente acessíveis e imediatamente gratificantes. O devaneio oferece exatamente isso: uma forma rápida e eficaz de escapar das pressões da realidade e experimentar estados emocionais mais positivos.
Ciclos de Estresse e Evitação
Um aspecto particularmente problemático do estresse relacionado ao MD é a criação de ciclos viciosos. O indivíduo pode inicialmente recorrer ao devaneio como uma forma de lidar com o estresse, mas o tempo gasto em fantasias pode levar à negligência de responsabilidades, o que por sua vez cria mais estresse. Este estresse adicional então alimenta mais devaneios, criando um ciclo que pode ser difícil de quebrar sem intervenção consciente.
Além disso, a evitação consistente de situações estressantes através do devaneio pode impedir o desenvolvimento de habilidades de enfrentamento mais adaptativas. O indivíduo pode nunca aprender a lidar eficazmente com desafios reais, mantendo-se dependente da fuga fantasiosa como sua principal estratégia de enfrentamento.
Fatores Psicológicos Subjacentes
Transtornos de Ansiedade e Depressão
Existe uma alta comorbidade entre o Devaneio Excessivo e transtornos de ansiedade e depressão [6]. A ansiedade, com sua tendência a gerar preocupações excessivas sobre o futuro e ruminação sobre o passado, pode tornar a realidade presente particularmente desconfortável. O devaneio oferece um refúgio onde o indivíduo pode experimentar controle, sucesso e tranquilidade que podem estar ausentes em sua experiência consciente normal.
A depressão, por sua vez, frequentemente envolve sentimentos de desesperança, baixa autoestima e anedonia (incapacidade de sentir prazer). Os mundos imaginários do MD podem oferecer uma fonte alternativa de prazer e significado, proporcionando experiências emocionais positivas que são difíceis de alcançar na vida real quando se está deprimido.
Perfeccionismo e Autoestima
Muitos indivíduos com Devaneio Excessivo relatam lutas com perfeccionismo e baixa autoestima [7]. O perfeccionismo pode criar padrões irrealisticamente altos para o desempenho e comportamento, levando a uma sensação crônica de inadequação quando esses padrões não são atendidos. Nos mundos imaginários, o indivíduo pode experimentar versões idealizadas de si mesmo que atendem a todos os seus padrões perfeccionistas.
A baixa autoestima pode fazer com que a realidade pareça constantemente ameaçadora ou desapontante. Se o indivíduo não se sente valorizado ou capaz na vida real, pode buscar validação e senso de competência através de fantasias onde é admirado, bem-sucedido e amado.
Sensibilidade Emocional e Intensidade
Algumas pessoas parecem ter uma predisposição natural para experiências emocionais mais intensas e uma maior sensibilidade a estímulos ambientais [8]. Esta sensibilidade pode tornar o mundo real ocasionalmente avassalador, criando uma necessidade de refúgio e regulação emocional. O Devaneio Excessivo pode servir como uma forma de modular a intensidade emocional, oferecendo um ambiente controlado onde as emoções podem ser experimentadas de forma mais segura e gerenciável.
Fatores Sociais e Ambientais
Isolamento Social e Solidão
O isolamento social e a solidão são tanto causas quanto consequências do Devaneio Excessivo [9]. Indivíduos que se sentem desconectados de outros podem recorrer a relacionamentos imaginários para satisfazer suas necessidades sociais. Paradoxalmente, quanto mais tempo passam em mundos imaginários, menos tempo e energia têm disponível para cultivar relacionamentos reais, perpetuando o ciclo de isolamento.
A solidão crônica pode ser particularmente dolorosa para seres humanos, que são fundamentalmente criaturas sociais. Quando as necessidades de conexão e pertencimento não são atendidas na vida real, a mente pode criar substitutos elaborados através da fantasia. Estes relacionamentos imaginários podem ser profundamente satisfatórios emocionalmente, mas não oferecem os benefícios reais da conexão humana genuína.
Ambiente Familiar e Dinâmicas
O ambiente familiar durante a infância e adolescência pode contribuir significativamente para o desenvolvimento do MD [10]. Famílias que desencorajam a expressão emocional, têm expectativas irrealisticamente altas, são emocionalmente distantes ou instáveis podem inadvertidamente criar condições que favorecem o desenvolvimento do devaneio como mecanismo de enfrentamento.
Crianças que crescem em ambientes onde suas necessidades emocionais não são adequadamente atendidas podem aprender a satisfazer essas necessidades internamente através da fantasia. Se a comunicação aberta e o apoio emocional são limitados na família, a criança pode desenvolver um mundo interior rico como compensação.
Influências Culturais e Midiáticas
A cultura contemporânea, com sua ênfase no entretenimento, escapismo e gratificação instantânea, pode contribuir para o desenvolvimento do Devaneio Excessivo [11]. A exposição constante a narrativas idealizadas através de filmes, livros, jogos e redes sociais pode alimentar fantasias e criar expectativas irrealistas sobre a vida.
Além disso, a cultura digital moderna pode reduzir as oportunidades para experiências reais de conexão, realização e aventura, criando um vácuo que pode ser preenchido por fantasias. A facilidade de acesso ao entretenimento e à estimulação constante pode também reduzir a tolerância ao tédio e à quietude, estados que são necessários para o desenvolvimento de habilidades de enfrentamento mais maduras.
Fatores Neurobiológicos e Genéticos
Predisposição Genética
Embora a pesquisa ainda esteja em seus estágios iniciais, há evidências emergentes de que pode haver componentes genéticos que predispõem alguns indivíduos ao Devaneio Excessivo [12]. Traços como sensibilidade sensorial, intensidade emocional, criatividade e tendências dissociativas podem ter bases genéticas e contribuir para a vulnerabilidade ao MD.
É importante notar que predisposição genética não é destino. Genes criam tendências e vulnerabilidades, mas o ambiente e as experiências de vida determinam como essas tendências se manifestam. Uma pessoa com predisposição genética para o MD pode nunca desenvolvê-lo se crescer em um ambiente de apoio e aprender habilidades eficazes de enfrentamento.
Diferenças Neurológicas
Estudos preliminares sugerem que indivíduos com Devaneio Excessivo podem ter diferenças na estrutura e funcionamento cerebral [13]. Áreas envolvidas na imaginação, memória e regulação emocional podem mostrar padrões de atividade diferentes. Essas diferenças podem ser tanto causa quanto consequência do MD, já que o cérebro é altamente plástico e se adapta aos padrões de uso.
Interação de Fatores: O Modelo Multifatorial
Vulnerabilidade e Estresse
O desenvolvimento do Devaneio Excessivo é melhor compreendido através de um modelo multifatorial que considera a interação entre vulnerabilidade individual e fatores de estresse ambientais [14]. Uma pessoa pode ter múltiplos fatores de vulnerabilidade (como predisposição genética, trauma na infância, sensibilidade emocional) mas só desenvolver MD quando expostas a estressores específicos que sobrecarregam suas capacidades de enfrentamento.
Este modelo ajuda a explicar por que nem todas as pessoas expostas a trauma ou estresse desenvolvem MD, e por que algumas pessoas desenvolvem a condição mais tarde na vida, mesmo sem trauma significativo na infância. A combinação única de fatores para cada indivíduo cria um perfil de risco personalizado.
Fatores Protetivos
É igualmente importante considerar fatores que podem proteger contra o desenvolvimento do MD [15]. Relacionamentos de apoio, habilidades de enfrentamento saudáveis, senso de propósito e significado, estabilidade ambiental e acesso a recursos de saúde mental podem todos servir como fatores protetivos. Fortalecer esses fatores pode ser uma estratégia importante tanto para prevenção quanto para tratamento.
Implicações para Tratamento e Recuperação
Abordagem Informada pelo Trauma
Compreender as raízes traumáticas do Devaneio Excessivo tem implicações importantes para o tratamento [16]. Abordagens informadas pelo trauma reconhecem que comportamentos aparentemente disfuncionais frequentemente servem funções adaptativas importantes e devem ser tratados com compaixão e compreensão.
Em vez de simplesmente tentar eliminar o devaneio, o tratamento pode focar em abordar as necessidades subjacentes que o MD está tentando satisfazer. Isso pode incluir trabalhar através de traumas não resolvidos, desenvolver habilidades de regulação emocional e criar oportunidades para satisfazer necessidades de conexão, propósito e autoestima na vida real.
Tratamento Holístico
O modelo multifatorial do MD sugere que o tratamento mais eficaz será holístico, abordando múltiplos fatores simultaneamente [17]. Isso pode incluir terapia individual para processar trauma e desenvolver habilidades de enfrentamento, medicação para tratar condições comórbidas como ansiedade ou depressão, mudanças no estilo de vida para reduzir o estresse e melhorar o bem-estar geral, e intervenções sociais para reduzir o isolamento e construir conexões de apoio.
Conclusão
As raízes do Devaneio Excessivo são complexas e multifacetadas, envolvendo uma interação intrincada entre fatores biológicos, psicológicos, sociais e ambientais. Compreender essas origens não é apenas um exercício acadêmico, mas uma necessidade prática para desenvolver estratégias eficazes de prevenção, intervenção e tratamento.
Para aqueles que vivenciam o MD, compreender suas raízes pode oferecer validação e autocompaixão. Reconhecer que o devaneio frequentemente se desenvolve como uma resposta adaptativa a circunstâncias difíceis pode reduzir a vergonha e a autocrítica que muitas vezes acompanham esta condição.
Para familiares, amigos e profissionais, esta compreensão pode informar abordagens mais compassivas e eficazes. Em vez de ver o MD como preguiça ou falta de força de vontade, podemos reconhecê-lo como uma estratégia de enfrentamento que, embora problemática, serviu funções importantes na vida do indivíduo.
Finalmente, compreender as raízes do Devaneio Excessivo nos lembra da importância de criar ambientes de apoio, abordar trauma e estresse de forma proativa, e desenvolver habilidades de enfrentamento saudáveis desde cedo. A prevenção, sempre que possível, é preferível ao tratamento, e isso requer uma compreensão profunda dos fatores que contribuem para o desenvolvimento desta condição complexa.
Referências
[1] Tua Saúde. (2024, 19 de fevereiro). Devaneio excessivo: o que é, sintomas, causas e tratamento. Disponível em: https://www.tuasaude.com/devaneio-excessivo/
[2] Lima, S. R. J., & Lisboa, W. (2025). Devaneio excessivo em adultos: revisão de escopo. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1808-56872025000100600&script=sci_arttext
[3] Dr. Tiago Costa. (2023, 14 de fevereiro). Devaneio excessivo (maladaptive daydreaming): quando o sonhar acordado se torna um problema. Disponível em: https://www.drtiagocosta.med.br/conteudo/devaneio-excessivo-maladaptive-daydreaming-quando-o-sonhar-acordado-se-torna-um-problema
[4] Instituto de Psiquiatria PR. Maladaptive Daydreaming: os malefícios do devaneio excessivo. Disponível em: https://institutodepsiquiatriapr.com.br/blog/maladaptive-daydreaming-os-maleficios-do-devaneio-excessivo/
[5] Maladaptive Daydreaming. (2024, 17 de fevereiro). The Link Between Maladaptive Daydreaming and Stress. Disponível em: https://maladaptivedaydreaming.org/blogs/md/maladaptive-daydreaming-and-stress
[6] Cleveland Clinic. Maladaptive Daydreaming: What It Is, Symptoms & Treatment. Disponível em: https://my.clevelandclinic.org/health/diseases/23336-maladaptive-daydreaming
[7] Guia da Vida. (2025, 27 de março). Os devaneios excessivos não são o problema: o que eles revelam. Disponível em: https://guiadavida.com.br/psicologia/devaneios-excessivos/os-devaneios-excessivos-nao-sao-o-problema/
[8] WebMD. (2024, 3 de outubro). Maladaptive Daydreaming: Signs, Causes, & Treatment. Disponível em: https://www.webmd.com/mental-health/maladaptive-daydreaming
[9] Psyche.co. (2024, 4 de janeiro). Maladaptive daydreaming made me feel trapped in my own mind. Disponível em: https://psyche.co/ideas/maladaptive-daydreaming-made-me-feel-trapped-in-my-own-mind
[10] Apollo Hospitals. (2025, 25 de abril). Devaneio Desadaptativo – Causas, Sintomas, Diagnóstico e Tratamento. Disponível em: https://www.apollohospitals.com/pt/diseases-and-conditions/maladaptive-daydreaming
[11] Harvard Health Publishing. (2024, 9 de janeiro). Maladaptive daydreaming: What it is and how to stop it. Disponível em: https://www.health.harvard.edu/mind-and-mood/maladaptive-daydreaming-what-it-is-and-how-to-stop-it
[12] Wikipedia. Maladaptive daydreaming. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Maladaptive_daydreaming
[13] IBND. (2024, 27 de dezembro). Devaneio Excessivo: O Que é, Sintomas, Teste E Tratamento. Disponível em: https://www.ibnd.com.br/blog/devaneio-excessivo-o-que-e-sintomas-teste-e-tratamento.html
[14] Somer, E. (2002). Maladaptive daydreaming: Um inquérito qualitativo. Journal of Contemporary Psychotherapy. Disponível em: https://cdn-cms.f-static.com/uploads/436421/normal_59c54b7c8cdef.pdf
[15] WikiHow. Como Lidar com os Devaneios Excessivos: 11 Passos. Disponível em: https://pt.wikihow.com/Lidar-com-os-Devaneios-Excessivos
[16] YouTube. (2 anos atrás). Devaneio excessivo e traumas na infância. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nOgCjJERgMU
[17] Reddit. (4 meses atrás). Has anyone ever heard of Excessive Daydreaming Disorder?. Disponível em: