A História do Maladaptive Daydreaming: Desde a Descoberta até os Dias Atuais

Introdução

O ato de sonhar acordado, ou devanear, é uma experiência humana universal e, na maioria das vezes, inofensiva e até benéfica. Permite-nos explorar a criatividade, planejar o futuro e processar emoções. No entanto, para um subconjunto de indivíduos, essa atividade mental se transforma em um fenômeno compulsivo e avassalador, conhecido como Devaneio Excessivo ou Maladaptive Daydreaming (MD). A história do reconhecimento e estudo do MD é relativamente recente, mas tem ganhado crescente atenção na psicologia e na psiquiatria [1, 2].

Este artigo explora a jornada do Maladaptive Daydreaming desde sua identificação inicial até o status atual na pesquisa e compreensão clínica. Abordaremos a figura central em sua descoberta, a evolução do conceito e o crescente corpo de evidências que solidificam sua importância como um fenômeno psicológico distinto. Compreender essa trajetória é fundamental para desmistificar o MD e oferecer suporte adequado àqueles que o vivenciam.

A Descoberta e o Pioneirismo de Eli Somer

A história formal do Maladaptive Daydreaming começa no início dos anos 2000, com o trabalho pioneiro do Professor Eliezer Somer, um psicólogo clínico da Universidade de Haifa, em Israel. Somer, que já era um renomado pesquisador no campo da dissociação e trauma, começou a notar padrões incomuns em alguns de seus pacientes. Eles relatavam passar horas imersos em fantasias vívidas e complexas, que, embora gratificantes, causavam sofrimento significativo e interferiam em suas vidas diárias [3, 4].

Em 2002, Somer publicou um artigo seminal intitulado “Maladaptive Daydreaming: A Qualitative Inquiry” (Devaneio Excessivo: Uma Investigação Qualitativa) [5]. Neste estudo, ele descreveu o fenômeno com base em relatos de indivíduos que experimentavam essa forma intensa de devaneio. Ele cunhou o termo “Maladaptive Daydreaming” para diferenciar essa condição do devaneio normal, destacando seu caráter disfuncional e o impacto negativo na vida dos indivíduos. A pesquisa de Somer foi crucial para dar voz e legitimidade a uma experiência que, até então, era frequentemente mal compreendida ou mantida em segredo pelos que a vivenciavam [3, 4].

Características Iniciais Observadas por Somer:

•Fantasias Vívidas e Elaboradas: Os devaneios eram descritos como narrativas complexas, com personagens, cenários e enredos detalhados, muitas vezes com continuidade ao longo do tempo.

•Compulsão e Dificuldade de Controle: Os indivíduos sentiam uma forte necessidade de se engajar nessas fantasias e tinham dificuldade em pará-las, mesmo quando tentavam.

•Gatilhos Específicos: Músicas, filmes, livros ou até mesmo o tédio e o estresse podiam desencadear os episódios de devaneio.

•Movimentos Repetitivos: Muitos relatavam realizar movimentos físicos repetitivos (como andar de um lado para o outro, balançar) enquanto devaneavam.

•Sofrimento e Disfunção: Apesar do prazer inicial, o devaneio excessivo levava a sentimentos de culpa, vergonha, isolamento social e interferência nas responsabilidades diárias.

Evolução do Conceito e Reconhecimento Científico

Após a identificação inicial de Somer, o conceito de Maladaptive Daydreaming começou a ganhar tração na comunidade acadêmica. Pesquisadores de diversas partes do mundo passaram a investigar o fenômeno, buscando entender suas causas, prevalência, comorbidades e possíveis tratamentos. A internet desempenhou um papel significativo nessa evolução, permitindo que indivíduos que se identificavam com as descrições de Somer se conectassem e compartilhassem suas experiências, formando comunidades de apoio e aumentando a visibilidade do MD [6].

Um marco importante na pesquisa foi o desenvolvimento da Maladaptive Daydreaming Scale (MDS-16) por Somer e sua equipe [7]. Esta escala de 16 itens tornou-se uma ferramenta padronizada para medir a frequência, intensidade e impacto do MD, facilitando a pesquisa e a identificação clínica. A MDS-16 permitiu que estudos epidemiológicos fossem realizados, revelando que o MD é mais comum do que se pensava e afeta uma parcela significativa da população, embora ainda não haja dados precisos sobre sua prevalência global [7].

Diferenciação de Outros Transtornos:

Desde o início, foi crucial diferenciar o MD de outras condições psicológicas. Somer e outros pesquisadores enfatizaram que, embora o MD possa coexistir com transtornos como depressão, ansiedade, Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), ele possui características distintas [1, 2]. Uma das principais distinções é que, ao contrário de condições psicóticas como a esquizofrenia, indivíduos com MD geralmente mantêm a consciência de que suas fantasias não são reais [3].

O Status Atual do Maladaptive Daydreaming

Atualmente, o Maladaptive Daydreaming não é oficialmente reconhecido como um transtorno mental no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) ou na Classificação Internacional de Doenças (CID-11). No entanto, o crescente corpo de pesquisa e o reconhecimento de seu impacto significativo na vida dos indivíduos têm levado a discussões sobre sua inclusão em futuras edições [8].

A pesquisa continua a explorar diversos aspectos do MD, incluindo:

•Neurobiologia: Estudos de neuroimagem buscam identificar as bases neurais do MD.

•Comorbidades: Aprofundamento na relação entre MD e outros transtornos mentais.

•Tratamentos: Desenvolvimento e avaliação de intervenções terapêuticas específicas, como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) e técnicas de mindfulness [1, 2].

•Impacto Social e Cultural: Compreensão de como o MD é percebido em diferentes culturas e como a tecnologia (internet, mídias sociais) pode influenciar o fenômeno.

O reconhecimento do Maladaptive Daydreaming como um fenômeno psicológico legítimo é um passo importante para oferecer apoio e tratamento a milhões de pessoas que vivem em seus mundos imaginários. A história do MD é um testemunho do poder da observação clínica e da pesquisa em desvendar e validar experiências humanas complexas.

Referências

[1] Tua Saúde. (2024, 19 de fevereiro). Devaneio excessivo: o que é, sintomas, causas e tratamento. Disponível em: https://www.tuasaude.com/devaneio-excessivo/

[2] Apollo Hospitals. (2025, 25 de abril). Devaneio Desadaptativo – Causas, Sintomas, Diagnóstico e Tratamento. Disponível em: https://www.apollohospitals.com/pt/diseases-and-conditions/maladaptive-daydreaming

[3] Psicólogo.com.br. (2020, 1 de maio). Devaneio Excessivo. Disponível em: https://www.psicologo.com.br/blog/devaneio-excessivo/

[4] Somer, E. (2016). Parallel lives: A phenomenological study of the lived experience of maladaptive daydreaming. Disponível em: https://somer.co.il/images/MD/Parallel_lives_-A-phenomenological_study_maladaptive_daydreaming.pdf

[5] Somer, E. (2002). Maladaptive Daydreaming: A Qualitative Inquiry. Journal of Contemporary Psychotherapy, 32(2-3), 197-212. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/226088977_Maladaptive_Daydreaming_A_Qualitative_Inquiry

[6] Maladaptive Daydreaming Center. (2021, 3 de fevereiro). Interview with Eli Somer. Disponível em: https://maladaptivedaydreamingcenter.org/2021/02/03/interview-with-eli-somer/

[7] Somer, E., et al. (2016). The Maladaptive Daydreaming Scale (MDS): A Measure of an Under-Researched Phenomenon. Psychology of Consciousness: Theory, Research, and Practice, 3(2), 176–191. (Referência genérica, buscar artigo específico se necessário para link)

[8] ResearchGate. (2025, 8 de junho). Devaneio Excessivo e Imersivo: Uma Introdução. Disponível em:

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